Os Jara são entes imateriais personificados e senhores de todas as coisas. Ser o dono de algo, na cultura kaiowá, significa ser origem, dispensador, e ao mesmo tempo guardião. A humanidade e seu espaço possuem seu dono, Nhandejara e Tekojara. A compreensão do dinheiro e a monetarização de todas as coisas, que ocorreu com a chegada dos brancos, não poderia ser interpretada diferentemente para esta sociedade e sua cosmologia. É comum os kaiowá chamarem os brancos e até outros índios de platajara, ou seja, dono do dinheiro, independentemente de suas posses monetárias.

A extensão da expressão Platajara varia dentro de um espectro entre a acusação e a jocosidade, pois pode significar que alguém se apropriou dos bens, tornando-se platajara, e não seguiu a regra da reciprocidade, jopói, fundamento da economia kaiowá. A sovinice é grave acusação social. Ser chamado da platajara pode significar o inverso quando alguém absolutamente pobre, numa roda de tereré, é chamado de platajara. O povo kaiowá também conhece o recurso socrática da ironia, he’ise kõiva, arrancando boas risadas do grupo.

A pergunta que proponho é por que os não-índios tornaram-se platajara e os indígenas tornaram-se índios? Antes de seguir adiante, recorremos ao dicionário para entender que todo índio é indígena, mas nem todo indígena é índio. Um indígena americano foi tornado índio por um erro geográfico dos conquistadores. Indígena é nativo, originário de um lugar. Há indígenas na Europa, na Ásia e na Oceania. Assim, uma boa parte de nós sul-matogrossenses somos indígenas, mas sem o aceitarmos, segundo consulta feita ao agroboy.

O que significa a transformação de um kaiowá, de um guarani e de um terena em índio? Entendo que esta metamorfose semântica é a mesma operação social para empobrecer alguém. Um pobre é alguém de quem se tirou algo. Um kaiowá, retirado de sua aldeia para ser assistido em uma reserva, lugar onde sua vida seria administrada pelo Estado, viu-se da noite para o dia, às vezes mais rápido que isso. Deste modo, foi transmutado de kaiowá em índio genérico sem-terra, índio assistido, e finalmente pobre. Empobrecido, estava preparado para o esbulho de seu último bem nos trabalhos mais extenuantes e pouco remunerados das cidades: a mão-de-obra. Neste trabalhos “perde o couro” em busca do pirá piré, termo guarani utilizado para dinheiro, literalmente, couro, escama de peixe. A escama de peixe brilha do mesmo modo que moeda preciosa.

Do outro lado, se pobre é alguém que foi empobrecido mediante o ritual da despossessão, deve haver seu oposto equivalente, o empossado. Para o empoderado, há o termo na língua guarani karaí, que significa batizado, senhor, termo usado para nominar os não-indios, alguns deles brancos. O responsável pela sua remoção do índios de si mesmo, pois a terra, sua mãe, é parte de seu corpo, tornou-se dono dos bens, alguém batizado e cristão: o karaí. Desde modo, os kaiowá e guarani nominam duramente a nossa sociedade, responsabilizando-nos pelo fim de seu destino. Os livros de história nos lembram que as minas de Potosi e de Ouro Preto na América, antes na posse dos índios, significava o próprio demônio que havia se apossado do que era por direito da cristandade, legítima proprietária. Assim, era missão divina, múnus, exorcizar os infiéis índios e devolver o ouro ao seu verdadeiro jara. Os índios, após curados de suas idolatrias, usufruiriam de um bem maior: a salvação no interior de reservas e a proteção, beneplácito soberano de sua Majestade. Ao cabo de alguns séculos, conseguiram devolver a Deus o ouro. Não podíamos esperar de um guarani, em sua leitura própria da história, uma palavra diferente para chamar batizar os exorcistas-conquistadores além de karaí.

Como o Estado e suas instituições representam o responsável pela retirada da terra, é compreensível o revide indígena e a invasão do Congresso promovida pelos kaiowá e outras etnias que não aceitam passivamente o grande exorcismo que foi a colonização e sua transformação em índios genéricos e administrados ou tutelados. O episódio ao qual me refiro ocorreu em 16 de abril de 2013 e causou horror aos deputados que dispararam da tribuna: “se a moda pega!”. Questionaram em seus atos a soberania do Soberano, representante que incorporou a divindade na terra. Este representante divino na terra, o Estado-nação, distribuiria direitos em troca de generalismos étnicos. Prometeu e não entregou. Os índios, que representam muitos de nós indígenas, e não se sentem representados pelo Estado, agem nos poucos corredores que lhes sobram. Na beiras das rodovias e dos corredores do congresso, quando as bombas de gás e os atropelamentos permitem.

Lembremos que ao chamar um guarani, um kaiowá de índio, é como disséssemos, sem o saber que um índio não é somente um nativo, um indígena, mas alguém que pertence à terra e que não deseja ser seu proprietário, nem lhe seria permitido, pois a terra lhe possui. Separá-lo da terra, mais que empobrecê-lo, foi separá-lo de si. 

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Tags: Platajara, colonização, karai

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