O Brasil possui 1.113 terras indígenas. Destas, 654 aguardam atos administrativos do Estado para terem seus processos demarcatórios finalizados. Este número corresponde a 58,7% do total das terras indígenas do país. Uma das causas do atraso na demarcação destas terras indígenas, segundo o governo, é o reduzido orçamento para custear os estudos em campo e ampliar as equipes técnicas, acrescido da alegação pura e simples do atual chefe do executivo de que não haverá mais um centímetro de terra para índio. Uma simples análise orçamento prova que a explicação não é verdadeira. Apenas no ano de 2016, o congresso brasileiro gastou 3,5 milhões na CPI da FUNAI e INCRA e reservou apenas 3 milhões na identificação das terras indígenas. O orçamenta anual nem sempre é executado na íntegra, pois é comum contingenciamento do poder executivo a cada ano. Concluímos, até prova em contrário, que demarcar as terras indígenas, que serão terras da União, não é prioridade do Estado. Qual a seria a racionalidade deste descaso?

Muito embora nos anos pós Constituição de 1988, que reconheceu o direito dos povos indígenas aos territórios tradicionalmente ocupados em razão da ancestralidade, e as políticas públicas para os mais pobres vinham avançado, ainda que lentamente, no Brasil, as estatísticas e as políticas públicas atuais são desanimadoras. A partir de 2015, a situação econômica e política do país foi precarizada ainda mais. Nos dois últimos anos, o país enfrenta crise econômica e política entre os poderes após o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), a ascensão de seu vice, Michel Temer (PMDB) e a eleição de Jair Bolsonaro, ex-PSL e atualmente sem partido. Ainda durante o governo temer, a influência da bancada ruralista cresceu, resultando na portaria do Ministro da Justiça n. 68, que altera o rito da demarcação dos territórios indígenas até sua total paralisação no atual governo e proposição da liberação o arrendamento e mineração em terras indígenas. O acirramento das tensões políticas reacendeu os manobras conservadoras no interior da Comissão de Sistematização durante a Assembleia Constituinte e estimula a intolerância com a diferenças culturais no Brasil atual. O fortalecimento da bancada evangélica e ruralista, expresso na indicação por parte destas bancadas dos presidentes das agências estatais da reforma agrária (INCRA) e para os povos indígenas (FUNAI) geram preocupação entre as entidades indigenistas (INA, CIMI, ISA e CTI) e associações indígenas como, por exemplo, a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), a COIAB (Coordenação Indígena da Amazônia Brasileira) e a FOIRN. Some-se a isso a militarização das coordenações regionais da FUNAI e a substituição de quadros técnicos por indicações políticas nestes órgãos.

A contabilidade dos procedimentos demarcatórios não publicados pela agência indigenista governamental (FUNAI), vinculada ao Ministério da Justiça (MJ), transferida por Medida Provisória do Executivo ao Ministério da Mulher, Direitos Humanos e Cidadania (MDH) e depois devolvida ao Ministério da Justiça (MJ) por decisão do Legislativo, prova que as demarcações de territórios considerados sagrados pelos povos indígenas, a despeito do prazo estabelecido nas disposições transitórias da Constituição Federal de 1988, foram paralisadas pelo poder executivo sob a influência dos interesses ruralistas e da mineração, que controlaram totalmente o Estado brasileiro. Há áreas cujos estudos técnicos aguardam há mais de 8 anos a publicação pelo Ministro da Justiça. Ao todo são 153 terras indígenas nesta situação, segundo o Instituto Socioambiental (2017). A inoperância, apontada pela análise da correlação de forças políticas, deve-se à oposição sistemática de lobistas no Congresso e à vitória das teses ultraliberais nos tribunais superiores do poder Judiciário que preferem contabilizar mortos a prejuízos. A causa deste quadro resulta da organização e força econômica da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), composta por 207 deputados federais, umas das maiores no parlamento brasileiro. O quadro é de racismo institucionalizado, baseado na ideologia racial e malthusiana, que desconsidera a dignidade a ameaça de extinção uma população de 896 mil pessoas, segundo o IBGE (2010), sobreviventes da população nativa do país.

A precarização de direitos sociais no Brasil é projeto que corre há tempo, citamos a alteração na Constituição, aprovada pelo Congresso Brasileiro como PEC 55. Este projeto congelou o aumento de gastos sociais, penalizando os brasileiros mais pobres por 20 anos, entre eles os povos indígenas. Fixou-se um limite para as despesas sociais, mas não para os serviços da dívida pública. Isto num quadro mundial em que 8 pessoas mais ricas conseguiram concentrar o equivalente em bens à metade da população mais pobre do mundo, incluídos aí os povos indígenas (OXFAM, 2017). Agora que concentraram tantos bens, negam-se a contribuir para ações emergenciais de saúde, pois a morte dos explorados seria desejável para os super-ricos, poupando-lhes do socorro.

Embora negada, fica difícil não associar as crises econômicas, à precarização dos direitos dos mais pobres, o aumento da violência e os altos índices de abuso de drogas lícitas e ilícitas. A taxa de homicídios também aumentou no Brasil nos últimos 10 anos (2005-2015), segundo dados Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A taxa de homicídios dolosos por 100 mil habitantes aumentou em 20 estados nesta década, enquanto o número de latrocínios cresceu em 18 estados. O aumento foi da ordem de 14,22% na taxa de assassinatos.

Àquele que nasceu indígena, a injustiça social ofereceu-lhe uma herança colonial: o número da violência que os atinge é superior à média nacional. É um destino que pende sobre sua cabeça desde o século XVI. O quadro de genocídio (per)siste por décadas e, embora negado pela oligarquia agrária, foi documentado pela Comissão Nacional da Verdade (2014), Relatório Figueiredo (1967) e CPI do Genocídio (2016). As violências, sob a forma de tortura e remoções coletivas forçadas, foram motivadas pelo interesse econômico das elites sobre as terras indígenas para plantio de soja, venda da madeira, criação de gado e exploração mineral, incluída neste item a água. Os dados do Ministério da Saúde (SIASI, 2015) registram 137 assassinatos de indígenas em todo o país, sendo que 36 deles foram registrados no Mato Grosso do Sul.

Além do homicídio, o suicídio também preocupa. Dos 87 casos registrados em 2015 entre indígenas no país, 45 ocorreram no Mato Grosso do Sul entre os Guarani e Kaiowá. De 2000 a 2015 foram registrados 752 casos de suicídio apenas neste estado.

Para termos uma ideia da gravidade da situação, consideremos o Quadro 01 – Média de Homicídios por continente e mundial, segundo a UNODOC/ONU (2012). A taxa média registrada entre 2007 a 2013 pelo DSEI-MS alarma, pois apenas na Reserva Indígena de Dourados o número é de 25,8 homicídios por 100 mil habitantes. Não há nenhuma cidade brasileira tão violenta quanto esta reserva, onde vivem confinados mais 15 mil índios numa área de 3,5 mil hectares, sendo quase uma extensão da cidade de Dourados, com características comuns a bairros periféricos brasileiros.

Diante da tabuada, nossa inteligência é sempre desafiada: nascer índio no Brasil precisa ser sinônimo de infância desnutrida, vida miserável e, aos sobreviventes, o prêmio de uma morte violenta? Será que estes números, objetivos, não incomodam as autoridades e parte da opinião pública porque muitos não acreditam que os índios também são seres humanos? De todo modo, enquanto persistir este quadro, para os índios que circulam pelas calçadas, ruas e cruzamentos de nossas cidades, não restará sequer o pão velho, que nos pedem diariamente.

______________________________

REFERÊNCIAS E FONTES:

As 11 bancadas mais influentes do congresso brasileiro: congresso em Foco. In UOL, 19/02/2016.

DANTAS, Tiago. Taxa de homicídios cresce em 20 estados em dez anos. In O GLOBO. 15/01/2017.

Fellet, João. Área indígena do MS lidera ranking de capitais mais violentas. In BBC Brasil, 24/02/2014.

ONU. Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime.

NOTAS:

  1. Pesquisa, organização e adaptação: Neimar Machado de Sousa, doutor em história da educação (UFSCar) e pesquisador (FAIND/UFGD). Karai Nhanderovaigua. E-mail: neimar.machado.sousa@gmail.com
  2. O artigo tem objetivo educacional e formato adaptado às mídias sociais.
  3. A grafia adotada para as palavras indígenas segue as fontes consultadas.

Exibições: 115

Tags: Desnutrição, Guarani, Kaiowá, indígena, suicídio, violência

Comentar

Você precisa ser um membro de Laboratório de Pesquisas em História e Educação Indígena para adicionar comentários!

Entrar em Laboratório de Pesquisas em História e Educação Indígena

© 2024   Criado por neimar machado de sousa.   Ativado por

Relatar um incidente  |  Termos de serviço