tata mombe’upy: o roubo do fogo.

Sousa, N.M.[1]

O uso do fogo e a distinção entre o cru e o cozido é um marco civilizatório humano. Muitas histórias indígenas contam a origem do fogo. O povo guarani narra que o fogo foi roubado dos urubus por Nhanderu Mirî e pelo sapo no início do tempo.

Segundo a narrativa registrada por Leon Cadogan e contada pelos caciques Pablo Vera, Patrício Benites, Laureano Escobar e Inocencio Martinez, no livro Ayvu Rapyta, a história do roubo do fogo, tata oiko ypy i ague, corresponde ao mito da nova terra, Yvy Pyahu.

A terra de nosso primeiro pai, Nhanderu Guasu, já havia se desfeito e a nova terra já existia. Nhanderu Guaçu disse ao seu filho, Nhanderu Mirî: - Vá à terra, meu filho, onde a tua sabedoria reconhecerá os homens que levam na cabeça o belo diadema sagrado, jeguakáva, e ensina-lhes como trabalhar na terra e o que fazer.

A terra já estava concebida, após ter sido levantada acima do mar, paráry, e firmada em seu devido lugar, era preciso comunicar aos homens que usavam o adorno de plumas na cabeça e todos os demais habitantes quais trabalhos deveriam ser cumpridos para que sobrevivessem na terra.

Após descer à terra, a primeira coisa na qual Nhanderu Mirî pensou foi num meio para presentear aos homens o fogo. Naquele tempo, os urubus eram homens alados muito poderosos, pois somente eles comiam alimentos cozidos e conheciam o fogo. Propôs um plano ao sapo, seu mensageiro: - Vou fingir-me de morto embaixo do ninho dos urubus e esperar que venham me fazer o mal.

Nhanderu Mirî desejava que os seus filhos que permanecessem na terra tivessem o mesmo poder que os urubus para preparar as futuras roças, cozinhar os alimentos e deixar de consumir apenas carne seca ao sol.

Nhanderu Mirî deitou-se e fingiu tão bem sua morte que até começou a cheirar mal. Não demorou para que os urubus soubessem por Nhanderu Guasu que seu filho havia morrido e receberam dele a tarefa de ressuscitá-lo. O chefe dos urubus, ao chegar onde estava o corpo, viu que era bem robusto e pesado, mudou de ideia e mandou os outros urubus buscarem as brasas para acender uma fogueira para assá-lo e devorá-lo todos juntos. Enquanto isso, o sapo estava escondido entre os arbustos próximo ao corpo de Nhanderu Mirî.

Assim que feiticeiros-urubus acenderam uma grande fogueira com as brasas que trouxeram, Nhanderu Mirî, protegido por uma resina não queimava, mexeu os pés e espalhou todas as brasas, mas o sapo não conseguiu alcançar nenhuma delas. Os urubus trouxeram mais lenha, aumentaram o tamanho da fogueira e fizeram mais brasas. Nhanderu Mirî esperneou novamente e desta vez uma brasa chegou até onde estava o sapo, que suportou o calor do fogo, engoliu uma brasa e correu para longe da vista dos feiticeiros.

Longe dos Urubus, o sapo exitou, mas foi obrigado por Nhanderu Mirî a cuspir a brasa ainda acesa dentro do buraco de uma madeira bem seca que logou pegou fogo. Os urubus ficaram assustados com o morto que se mexia e com a segunda fogueira, pois não sabiam de mais ninguém que soubesse o segredo do fogo. Apavorados, tentaram fugir, mas foram castigados por Nhanderu Guasu pelo que fizeram ao seu filho.

Nhanderuvusu, sabendo o que os urubus foram egoístas, retirou todos os poderes deles e os condenou a viverem para sempre como pássaros carniceiros que nunca mais alcançariam a plenitude da vida perfeita.

Depois disso, Nhanderu Mirî ensinou os segredos da obtenção do fogo aos seus filhos, usando vários tipos de madeira, uma flecha pontuda, cipó-de-sapo e um pequeno canudo de taquara para acender as brasas.

Levi-Strauss lembrou que os autores antigos não registraram esse mito entre os Tupinambá, mas que ele bastante comum nas tribos de língua tupi. Na bacia amazônica há muitas versões entre os Tembé, Tenetehara, Tapirapé e Shipaya. No Chaco e nordeste da Bolívia a história também foi registrada entre os Choroti, Tapieté, Ashluslay e Guarayo. Esse mito também é conhecido entre os Botocudo, Bororo, Bakairi e Terena.

A análise dos mitos é tarefa complexa, pois, para os índios, a mitologia é a verdadeira história, a própria história e a interpretação contextual da realidade. Não são histórias fictícias como nós vemos devido à influência do pensamento grego, onde os mitos foram profundamente estudados, mas também vistos como opostos à filosofia e à razão, frisa Betty Mindlin.

 

REFERÊNCIAS E FONTES:

CADOGAN, León. Ayvu Rapyta. São Paulo: USP, 1959.

Lévi-strauss, Claude. Mitológicas 1. São Paulo: Cosac & Naify, 2011.

Mindlin, Betty. (2002). O fogo e as chamas dos mitos. Estudos Avançados, 16(44), 149-169.

 

IMAGENS:

MARQUES, Marcelino Fernandes. Urubu-Rei. São Paulo: G1, 2016.

STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Porto Alegre: L&PM, 2010.

[1] Doutor em educação pela UFSCar. E-mail: neimar.machado.sousa@gmail.com

Tags: fogo, tata

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