Prof. Neimar Machado de Sousa (FAIND/UFGD)
Uma das personagens centrais da história do povo hebreu foi Jesus de Nazaré. Uma pesquisa bibliográfica recente, realizada em jornais, indica que seu sobrenome é Souza, vive numa aldeia em Caarapó – MS e pertence à tribo kaiowá.
O povo hebreu, composto por várias etnias, diferentemente do povo kaiowá, conquistou seu lugar na memória na história ocidental pela contribuição na literatura e pelo monoteísmo ético, segundo as lições das aulas de história antiga. As narrativas dos antigos foram contadas, inicialmente ao redor do fogo, de madrugada, de avô para pai e para neto por gerações, guardadas na oralidade até que ganharam versão escrita nos textos bíblicos, guardando a lembrança de acontecimentos ocorridos há mais de quatro mil anos.
As memórias dos kaiowá também são guardadas em cantos repetidos em cerimônias e rituais e contadas ao redor fogo, enquanto assam mandioca e batata. Segundo o Mito dos Gêmeos, o povo Kaiowá é descendente de sol, Kuarahy, que ainda no ventre de sua mãe começou uma caminhada para encontrar eu pai, Pa’i Kwará.
Segundo as memórias hebreias, tudo teria começado quando Abraão, patriarca dos judeus, inicia uma caminhada na cidade de Ur, na Caldéia, (atual Iraque) até Canaã, a terra prometida, marcando, deste modo, o início do Judaísmo, uma das primeiras religiões monoteístas. Esta terra foi prometida ao patriarca como recompensa por sua fidelidade.
Como historiadores, formados na escola de Heródoto, consideramos que o passado não se repete, a não ser nas farsas e tragédias. Diferentemente de Abraão, o patriarca, Jesus galileu, foi referenciado por Flávio Josefo (XVIII, 3, 2), no seu livro Antiguidades Judaicas. Sobre o galileu escreveu que foi
um homem sábio, que praticou boas obras e cujas virtudes eram reconhecidas. Muitas pessoas de outras nações tornaram-se seus discípulos. Pilatos o condenou a ser crucificado e morto. Porém, aqueles que se tornaram seus discípulos pregaram sua doutrina. Eles afirmam que Jesus apareceu a eles três dias após a sua crucificação e que está vivo. Talvez ele fosse o Messias previsto pelos prognósticos dos profetas.
Há poucos dias, no Mato Grosso do Sul Jesus foi condenado. Desta vez não foi o nazareno, mas foi Jesus de Souza. Seu irmão, Clodiodi de Souza, agente de saúde, foi assassinado, num crime que está sendo investigado pela Polícia Federal e Ministério Público Federal. Um vazamento da investigação indica que o culpado não se chamava Pilatos. O responsável pelas investigações não forneceu mais detalhes, mas a comunidade kaiowá e guarani de Te’ýikuê denuncia que os assassinatos de índios nunca são investigados ou esclarecidos.
O massacre, negado em nota pública pelo sindicato local, deixou seis feridos, um morto e seis mil pessoas amedrontadas. O corpo de Clodiodi foi sepultado na fazenda Yvu, onde foi morto. Os dois irmãos foram feridos à bala na fazenda Yvu, antiga Aldeia Toro Paso, de onde foram gradativamente removidos pelo estado e agentes privados para a Reserva Indígena José Bonifácio, criada em por decreto presidencial em 20 de novembro de 1924. Esta reserva, marco da chegada da cerca aos territórios tradicionais, a remoção forçada dos índios de suas aldeias para as reservas e o “esparramo” das famílias grandes pelas reservas e aldeias de parentes no Paraguai, de onde são proibidos de voltar até hoje pelas autoridades e moradores das cidades fronteiriças sob a acusação de que são paraguaios e não são mais indígenas.
Neste momento, Jesus de Souza luta pela sobrevivência na enfermaria do Hospital da Vida em Dourados – MS, para onde foi transferido e passou por duas cirurgias. Ele é professor na Escola Municipal Indígena Nhandejara Pólo na Aldeia Te’ýikuê, na cidade de Caarapó – MS. Os outros feridos à bala, que deram entrada no hospital, já tiveram alta, Jesus ainda não.
Os moradores que auxiliaram no socorro dos índios feridos no hospital municipal São Mateus são hostilizadas pelas redes sociais e pessoalmente como inimigos públicos no município onde Jesus foi baleado. Curiosamente, nos bingos o número 44, referência do calibre de arma, é anunciado por locutores nas quermesses paroquiais como “Lei do Mato Grosso”, desafiando a razão, as autoridades e materializando-se em massacres.
Os índios guarani e kaiowá, moradores da Aldeia onde ocorreu o massacre, são hostilizados ao circularem na cidade, nas estradas que passam pelas fazendas, no comércio e nos bancos ao fazerem saques de benefícios sociais. Neste sábado (25) houve uma manifestação pela paz no campo na cidade de Caarapó. Uma sinalização que chama a atenção dos motoristas que chegam à cidade é uma placa que registra: “Caarapó é do senhor Jesus.”
Os professores que atuam na formação continuada de mais de oitocentos professores indígenas, além das crianças indígenas matriculadas na educação básica no estado também sofrem preconceito que paira sobre os povos indígenas. Estes pesquisadores são “admoestados” de diversos modos e mídias, por enquanto sem agressão física, a não frequentarem as aldeias e falarem sobre os índios, pois, neste caso, seriam acusados e investigados como incitadores de invasões, uma vez que os indígenas não seriam capazes de planejar as próprias ações, sendo manipulados por agentes externos. Em outras palavras, o resultado destas ameaças gera medo que tende a aumentar a exclusão dos povos indígenas dos benefícios do Estado, entre eles a educação, configurando um cenário de racismo institucional.
Inspirados pela narrativa de Jesus, o de Nazaré, esperamos que a noite da violência e do preconceito seja esclarecida pela ressurreição. Para lembrarmos de sua história, posto aqui uma fotografia feita pouco tempo antes do atentado que sofreu. Agora entendo porque Jesus, na enfermaria, tem pedido laranjas e bananas.
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* Neimar Machado de Sousa, Karai Guaiguingue, é membro da Comissão Regional Justiça e Paz, doutor em educação pela UFSCar e professor na Faculdade Intercultural Indígena - FAIND/UFGD, em Dourados - MS. Coordena o Serviço de Documentação e Informação sobre os Povos Indígenas. E-mail: neimarsousa@ufgd.edu.br
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