Neimar Machado de Sousa[1]
Vivia nas florestas e assustava viajantes perdidos e solitários. Por ser morador dos montes e da mata, Ca’aguá, muita gente imaginava que não fosse parte da humanidade, sendo meio homem, meio animal. Apesar da feiura que lhe atribuíam, era respeitado pelos moradores do campo e criadores de animais, porém temido pelos da cidade. Entre as muitas lendas que contavam sobre ele, consta uma que era resultado do romance de um deus, digo Zeus, com uma cabra, por isso seus pés tinham cascos, herança materna. As pernas eram cabeludas e o cabra tinha até chifres. Os pavores súbitos daqueles que se aventuravam sozinhos pelas florestas era culpa também de Silvano.
Silvano, da mitologia grega, era também conhecido como Pã, gostava de música e não se separava da flauta feita de taquara. A flauta foi o resultado de uma paixão mal resolvida, pois sua ninfa preferiu ser transformada em taquara a se casar com o homem-bode. Este personagem é referenciado por muito tempo na literatura antiga, havendo relatos desde o Egito antigo, mas tendo desaparecido, considerado morto, durante o Império Romano tardio, segundo os mitógrafos. Teve o mesmo destino de outras divindades pagãs, que foram sendo perseguidas nas cidades, pelos cristãos convertidos, esgueirando-se pelas pequenas as vilas, depois fugindo para os bosques, até serem oficialmente declaradas mortas. Após sua morte, a única lembrança de Fauno, seu outro nome, era o céu estrelado à noite. Lá está ele, na constelação de Capricórnio.
Para nossa surpresa, o tempo antigo nunca foi tão moderno, pois uma psicóloga jura que Pã foi avistado este ano na cidade de Caarapó, Mato Grosso do Sul. Explico. Após a morte do índio Clodiode de Souza e do tiroteio que feriu outros tantos, a antiga aldeia, Te’ýikue, como a chamam os Guarani e Kaiowá, houve uma epidemia de síndrome do pânico. Até o momento, mais de 90 pessoas daquele lugar foram encaminhadas para o psiquiatra, diagnosticadas com Síndrome do Pânico.
Nesta recente aparição de Pã, em Caarapó, tudo indica que o pânico é causado pelos xingamentos diárias que os índios recebem, dos olhares fulminantes que recebem na cidade, do comércio que se recusa vender para índio, dos fazendeiros que os demitem em represália pelas ocupações e do arsenal de guerra apreendido em sedes de fazendas que avançaram ao longo de décadas sobre o território tradicional. O histórico de violências é antigo na região. Estes índios foram sistemática e coletivamente expulsos de variadas formas: estupros, ameaças com a captura, coerção mediante arma de fogo, compra de lideranças, oferta de escola e atendimento médico em troca do abandono da terra, queima das casas, destruição com animais de plantações, até pulverização com veneno...
Como Silvano, os índios, por insistirem em dizer que são índios, são desumanizados, chamados de bugres e preguiçosos. Já faz quatro séculos que ouvem isso por onde passam, pois a colonização espanhola e portuguesa os apresentava como preguiçosos ao mesmo tempo em que não abria mão do seu trabalho por toda a antiga América.
Na nova América não poderia ser diferente, pois os trabalhos mais pesados e menos remunerados na construção civil e na produção de açúcar e etanol são reservados para os trabalhadores indígenas. Geralmente estas empresas são dirigidas por gestores que não acreditam na capacidade dos índios para aprender e desempenhar outras tarefas melhor remuneradas.
Deste modo, os índios vão sendo assemelhados a Silvano, pois embora haja tantos nas periferias mais pobres das cidades, a maioria sobrevive no campo, esgueirando-se em reservas superpopulosas onde foram confinados e proibidos de sair, exceto para trabalhar.
Como Pã, os índios são muito temidos nas cidades vizinhas, sendo acusados diariamente no rádio de serem todos selvagens e violentos, meio bichos. Como seu parente da mitologia grega, também são declarados mortos, quando se suicidam, sem esperança, quando levam saraivadas de tiros, por tentar voltar para onde viveram os pais e avós. Apesar do ódio, Silvano ainda canta ao som da taquara e do mbaraká e os jovens criam rimas de rap.
Após consultar o historiador italiano Carlo Ginzburg, concluí que o anúncio da morte de Pã era alarme falso. Ele anda vivinho pela região de Caarapó, mas temo que poderá se mudar para outras cidades se nada for feito e não haverá medicamento químico para curar a dor da injustiça.
[1] Neimar Machado de Sousa, Karai Nhande Rovaigua, é membro da Comissão Regional Justiça e Paz, doutor em educação pela UFSCar e professor na Faculdade Intercultural Indígena - FAIND/UFGD, em Dourados - MS. Coordena o Serviço de Documentação e Informação sobre os Povos Indígenas. E-mail: neimarsousa@ufgd.edu.br
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