PARADIGMA
Neimar Machado de Sousa[1]
Era um garoto recém-chegado na Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande, MS. Classe de filosofia. A professora, apelidada pelos estudantes de Megera, começou a falar de paradigma: “dizia que paradigma é um exemplo que serve como modelo.” Citava o físico Thomas Kuhn para provar que o paradigma, embora inicialmente revolucionário, torna-se com o tempo um obstáculo ao progresso da ciência.
Outro professor, o Padre, mais ortodoxo, empenhado em conquistar as mentes, após dizer que estudou em Roma, rezava o rosário de suspeitas fundadas contra a professora de Sociologia, Megera, e o professor de História, o Mineiro: “o comunismo, responsável pela perda do paraíso, era um perigoso demônio a confundir a mente dos jovens.” Acreditava que paradigma era sinônimo de tradição e pontificava: “tradição é a melhor maneira de se fazer algo, aprimorada por aqueles que nos precederam.”
Os garotos que seguiram as lições de Sócrates além da graduação, afiando a navalha da dúvida, presenteada no segundo ano pelo professor Descartes, perceberam que aquele velho grego, o Paradigma, era ardiloso, pois frequentemente um paradigma de uma área do conhecimento migrava a bordo do sofisma para outras áreas, normalmente para serviço a projetos autoritários. “Aos poucos a ciência foi convertida num operário da opressão”, repetiam sempre os mestres da suspeita: Nietzsche, Freud e Marx.
Um exemplo de paradigma fugitivo é o darwinismo social, fugitivo da biologia e abrigado na sociologia positivista do século XIX. Seus efeitos nefastos estão guardados nas pastas dos agro-congressistas que tentam reverter a mudança paradigmática vitoriosa na Constituição de 1988 com a PEC 215.
Em 1889, chegou a República ao Brasil. Ao longo de sua vida teve muitos namorados. Um deles foi um militar da Escola da Praia Vermelha, onde o professor Benjamin Constant formou o mato-grossense Cândido Mariano Maria Rondon. O breviário da escola de oficiais professava a crença de que as diferenças culturais desapareceriam com o tempo e a sociedade brasileira se configuraria com uma nação monocultural de um só povo. Para acelerar esta purificação, o caminho da política indigenista brasileira foi a estrada da integração, associada a uma política de migração para embranquecer a população, tornando-a mais branca, cristã e europeia.
Assim surgiu a agência indigenista estatal: o Serviço de Proteção do Índio (1910). Aos poucos os candidatos a fazendeiro viram no Serviço de Proteção ao Índio um sócio-investidor para remover, após explorar a mão-de-obra dos peões indígenas, as famílias que ocupavam as aldeias para o interior das reservas temporárias até que deixassem de ser índios integrados à “comunhão nacional”. As formas e os meios de remoção não eram comungados pelos índios ameaçados com a captura, expulsos sob laço a pé e às vezes pior que gado em caminhões.
Este paradigma da integração, expresso no Código Civil de 1916, transformava o índios em ser “relativamente incapaz” e seguiu na legislação indigenista até o Estatuto do Índio, Lei 6.001/1973. O novo paradigma nasceu nas aldeias, durante o regime militar, quando em 1969 foi criada a União das Nações Indígenas, matriarca do movimento indígena e indigenista que conseguiu consagrar o reconhecimento dos direitos indígenas na Constituição de 1988. O nome do novo paradigma da Constituição pode ser qualificado, de modo simplista, como substituição do modelo integracionista-assimilacionista pelo modelo da cooperação e, ao invés de uma nação monocultural, uma nação de nações, pluricultural e multilíngue.
Como os paradigmas obsoletos são obstáculos às revoluções científicas e sociais, decorridos quase trinta anos da promulgação da Constituição, temos duas forças políticas com posições diferentes. O Congresso tenta diuturna e de madrugada também aprovar com todo custo a PEC 2015. Os militares do exército percebem que compreender a diversidade cultural é parte de sua missão institucional. É o que indica o artigo Inteligência Cultural, de autoria do tenente-coronel ALESSANDRO VISACRO, no qual reflete que “contrariando as expectativas daqueles que apostaram no fim da História, o fenômeno da globalização motivou, justamente (como um de seus efeitos não previstos e paradoxais), o fortalecimento de identidades culturais locais, em detrimento da formação de uma suposta homogeneidade cultural de âmbito planetário.”
O humanismo rondoniano, embora construído sob o paradigma positivista e cartesiano, não precisa mais envergonhar-se dos colegas de farda que frequentam as bibliotecas e os bancos universitários.
[1] Neimar Machado de Sousa, Karai Guaiguingue, é membro da Comissão Regional Justiça e Paz, doutor em educação pela UFSCar e professor na Faculdade Intercultural Indígena - FAIND/UFGD, em Dourados - MS. Coordena o Serviço de Documentação e Informação sobre os Povos Indígenas. E-mail: neimarsousa@ufgd.edu.br
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