MINOTAURO

Neimar Machado de Sousa[1]

 

A mitologia é uma narrativa histórica clássica, cronologicamente anterior à história, mas que continua atual, mesmo após a criação da ciência histórica. Sua permanência, mesmo após a saraivada laica de Voltaire e da Revolução Francesa, indica suas funções sociais: guardar a memória no recipiente da oralidade e socializar a identidade de um povo.

Uma história bastante conhecida no ocidente é a Lenda do Minotauro. Segundo os mitógrafos, Europa era uma mulher de olhos grandes que enxergava muito bem, princesa Fenícia por quem o rei dos deuses, Zeus, se apaixonou. Um dia estava com as amigas no bosque. Zeus transformou-se em touro e se aproximou dela. Assim que ela montou o animal, ele saltou sobre o mar, voando até o sul da ilha de Creta, onde adotou a forma de um jovem bonito. Dessa união nasceu Minos, rei de Cnossos, uma das cidades cretense.

O menino cresceu e virou rei. Um dia para convencer os irmãos e súditos de sua origem divina pediu a ajuda de seu tio, Poseidon, para oferecer um sacrifício ao seu pai Zeus. O tio enviou-lhe do mar um bonito touro branco como a neve, porém, como o animal era muito bonito, o rei o guardou para si, não oferecendo o sacrifício, o que foi considerado um insulto por Poseidon.

Como vingança, os deuses fizeram com que a rainha se apaixonasse pelo touro, que não correspondia. A rainha pediu ajuda a Dédalos, que construiu uma estrutura em forma de vaca. Da união entre o touro e a rainha nasceu um monstro, meio homem, meio touro. O monstro foi chamado de Minotauro e vivia escondido num labirinto sob o palácio real. O touro de Minos foi morto pelo herói ateniense, Teseu, filho de Egeu. Nesta epopeia foi auxiliado pela jovem apaixonada, Ariadne, que lhe forneceu uma espada mágica e um novelo para encontrar o caminho de volta do labirinto.

A mitologia e as artes expressam e reforçam a identidade. Assim, podemos pensar que a identidade sul-matogrossense manifesta-se em dois símbolos antagônicos e complementares: o boi e o bugre, ambos presentes nas artes plásticas do estado. O boi é o grande tema do artista plástico, Humberto Espíndola. O bugre é o tema de outra artista, Conceição Freitas da Silva, a Conceição dos bugres. Suas esculturas, como os índios, eram talhadas na madeira a golpes de facão, depois revestidos com cera de abelha.

A tradição oral, onde mora a mitologia, comporta múltiplas atualizações que não cabem no papel. Uma das versões da lenda do minotauro de Creta conta que o boi escapou à espada de Teseu e foi trazido para os Campos da Vacaria, atual Mato Grosso do Sul. Aqui constituiu descendência numerosa. Seus descendentes somam hoje 21 milhões de cabeças, segundo o IBGE (2015). Tornaram-se proprietários de 23 milhões de hectares de terra, 65% das terras de Mato Grosso do Sul, onde são conhecidos como majestade.

A prova que descendem do Minotauro é que, os outrora pacíficos bovinos, trazidos pelos missionários espanhóis de Assunção, transformaram-se em pastadores de gente, como seu pai, e devoram moças e moços em tributo anual, não mais atenienses, mas Guarani e Kaiowá. Estes últimos, à espera de um herói, Teseu, sobrevivem confinados em apenas 0,08% do território dos Campos de Vacaria.

No currículo dos filhos de Minotauro, oriundos da ilha de Creta, está a ocupação de outra ilha, chamada de Ínsua em 1972, no pantanal mato-grossense, de onde expulsou primeiro os roçados e depois os Guató para a periferia de Corumbá, MS. Ali, protegidos pelas autoridades, o valentão sentiu-se em casa e lembrava de sua ilha natal na Grécia.

Nos campos de vacaria, o Minotauro continuou seu senhorio, tirando aos índios a vida e as condições de sobrevivência. Foi um colonizador tão eficiente que, onde antes havia a floresta, refúgio dos Kaiowá, os moradores da mata, agora dominam o pasto e seu pastores.

O segredo do sucesso do Minotauro é sua especialização logística e seus amigos. Para chegas aos campos de Vacaria, aliou-se aos missionários jesuítas, depois, para limpar o terreno, foi ajudado pelos madeireiros e pela motosserra. Derrubadas as árvores e os pés de erva-mate, trouxe mais bois em pessoa. O bovinamento foi protegido por cartórios e pistoleiros.  

O Minotauro, mesmo tendo nascido no mundo antigo, soube modernizar-se ao capitalismo e à democracia. Hoje conta com a ajuda de empresários, banqueiros e a segurança jurídica, fornecida por seus representantes na política, seus dispositivos jurídicos e emendas constitucionais.

Na história familiar do Minotauro, também há suicídio. Egeu, pai de Teseu, rei de Atenas, ao pensar que seu filho havia fracassado na expedição cretense atirou-se de um penhasco morrendo afogado no mar, batizado com seu nome. Os índios, especialmente os mais jovens, descrentes no poder da mata e de seus donos míticos contra o boi, também se suicidam no afã de apressar o teko porã, o bem viver.

Que Teseu, o ateniense, possa nascer e trazer o natal para as dezenas de acampamentos indígenas espalhados pelos campos de vacaria. O herói é aquele que luta incansavelmente contra inimigos poderosos e contra toda esperança. Seus apelidos históricos são muitos: Dorcelina, Marçal, Sepé, Tibério, Thomas Münzer.


[1] Neimar Machado de Sousa, Karai Guaiguingue, na língua kaiowá, e Karai Marangatu Nhanderova’iguá, na língua guarani, é membro da Comissão Regional Justiça e Paz, doutor em educação pela UFSCar e professor na Faculdade Intercultural Indígena - FAIND/UFGD, em Dourados - MS. Coordena o Serviço de Documentação e Informação sobre os Povos Indígenas. E-mail: neimarsousa@ufgd.edu.br

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