MBA'E MEGUÁ: O INFORTÚNIO

Sousa, N.M.[1]

O tempo no qual a saúde indígena no Brasil, teko resãi, é adoecida, teko rasy, pelas “reformas” liberais, pode ser chamado de mba’ê meguá, termo guarani para infortúnio, desgraça, e que associado à palavra Yvy, terra, compõe a expressão Reino da Morte.

A Yvy Mba’ê Meguá, Reino da Morte, é lugar oposto à Yvy Marañe’ỹ, o patamar celeste, Yváy, da Terra sem Males. Para esta terra perfeita caminham aqueles que após praticarem seus cantos, danças, rezas e os jejuns elevam-se pela leveza de seu corpo ao estado de perfeição, aguyje, para entrar na companhia dos antepassados, Nhande Ramõi, Nhanderu Mirῖ, Nhandesy e Nhanderyque’ý.

Os antigos kaiowá diziam Mba’e Megwã, Guaruje ou ma'emegua para dizer quando sabiam que chegariam doenças à aldeia ou quando alguém estava com feridas pelo corpo.

Os Apapocuva explicam que Nanderuvuçú, o criador, retirou-se para distantes lonjuras, onde reinam as trevas eternas, "para lá deter a perdição”. Desta maneira, assim como foi o criador da terra, também pode ser seu destruidor. Os meios para a aniquilação são as várias desgraças, mbaemeguá. Basta uma decisão sua para que tudo se acabe. O que o convence de não fazer isso são as ações dos rezadores, nhanderu kuera, e a realização de rituais renascer o tempo novo, Ára Pyahu, e recomeçar uma nova primavera, Jakairá, época em que o milho branco, sagrado, e demais alimentos brotarão de novo.

A casa do criador do mundo está envolta na noite eterna, onde ele, deitado em sua rede, carrega no peito a luz resplandecente que o acompanhou no erguimento da terra e que agora ilumina os arredores de sua morada no oriente, ko’enju, mantendo os Mba’e Megua afastados da terra e dos homens. O Morcego Devorador, Mbopi Karu, pende da cumieira de sua casa, ongusu. O destruidor dos homens, Jaguaretê Hovy, a onça azul, está deitada debaixo da sua rede. Uma grande serpente está na entrada da casa, Kuriju Jaguá.

A lenda apapocuva de Guyrapoty, dilúvio, fornece uma verdadeira lista dos infortúnios e desgraças cósmicas, mba’e meguá, que podem leva ao fim do mundo: O incêndio da terra (Yvy Okay), terremoto e desmoronamento da terra (Yvy Ryryῖha), o dilúvio (Yporu), a queda das trevas (Pytũ Ye’a) e a chegada da Onça Azul (Jaguaretê Hovy) são denominados mbaé meguá pelos pajés, nhanderu kuera.

A natureza dá muitos sinais da aproximação das desgraças: eclipses, tremores de terra, aparição de animais e alguns pássaros que trazem mensagens, mbora’u. O fechamento de várias Casai, Casas de Apoio à Saúde Indígena, resultado dos cortes financeiros na saúde indígena pelo Ministério da Saúde, antecipam o Yvy Mba’e Megua sobre crianças, idosos e mulheres que precisam voltar doentes para suas aldeias sem atendimento médico pela falta de hospedagem, alimentação e interrupção de serviços mínimos de limpeza.

Entre os muitos infortúnios que se lançaram sobre os índios ao longo da história como, por exemplo, ataques de tribos inimigas, chegada dos portugueses e espanhóis, trabalho forçado, aprisionamento pelos bandeirantes, a escravidão nas fazendas, epidemias de varíola e tuberculose, fome, cortes de orçamento, eles seguem sua caminhada, oguatá, confiando em seus líderes espirituais, nhanderu, na esperança de que purificados chegarão à morada onde estão seus antepassados, apesar do cansaço da terra que clama por descanso.

Não é só a tribo Guarani que está velha e cansada de viver, mas é toda a natureza, pois em seus sonhos os nhanderu ouvem junto a Nhande Ramõi Jusu Papa, o criador, as súplicas da terra: "devorei cadáveres demais, já cortaram árvores em demasia, estou farta e cansada, ponha um fim a isto, meu pai!'' Haverá alguma esperança a não ser seguir Nhanduá, cacique mítico, na sua caminhada até o Kandiré, na direção onde a terra não tem males?

 

REFERÊNCIAS E FONTES:

CADOGAN, Leon. Ayvu Rapyta. São Paulo: USP, 1959.

CLASTRES, Pierre. A Fala Sagrada. São Paulo: Papirus, 1990.

NIMUENDAJU, Kurt. As Lendas da Criação e Destruição do Mundo como Fundamento da Religião dos Apapocúva Guarani. São Paulo: Hucitec-USP, 1987.

IMAGENS:

MUNCH, Edward. O Grito. Oslo, 1893.

POMBERO. O Dono da Noite.

[1] Doutor em educação pela UFSCar. E-mail: neimar.machado.sousa@gmail.com

Tags: mba'e, megua

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