Os professores e lideranças kaiowá e guarani se reuniram dois dias na Aldeia Te’ýikue, em Caarapó (MS) para refletir sobre educação escolar, avaliar os 30 anos de educação escolar indígena e manifestar-se publicamente às autoridades brasileiras.
Foi o XXV Encontro de Professores e Lideranças Kaiowá e Guarani. Durante este encontro houve diálogo com o Conselho da Aty Guasu, também reunido nesta aldeia sobre a importância do território para a educação. Reafirmaram que ambos são indissociáveis.
O encontro foi coordenado pelo professor kaiowá Ms. Lídio Cavanha Ramires e os participantes foram acolhidos pelos educadores indígenas de Caarapó, representados pelo diretor da Escola Municipal Indígena Nhandejara Polo, Prof. Rogério Vilhalba. O evento teve o total apoio da Secretaria Municipal de Educação de Caarapó, representada pela profa Ieda Marram, secretária municipal de educação, e a profa. Anari Felipe Nantes, educadora e indigenista.
Participaram do encontro mais de 400 educadores indígenas. A programação contou com as conferências da Dra. Adir Casaro Nascimento (UCDB), Ms. Eliel Benites (FAIND/UFGD) e o deputado estadual Pedro Kemp (ASLMS).
Os professores discutiram em grupos por municípios e apresentaram suas avaliações, reflexões e demandas em Assembleia. O próximo encontro será em Amambai e as deliberações serão levadas ao Fórum de Educação Escolar Indígena de Mato Grosso do Sul (FOREEIMS) a ser realizado em Miranda, Aldeia Cachoeirinha, no mês de setembro.
Este é o documento final do XXV Encontro de Professores Guarani e Kaiowá, divulgado pela coordenação do evento e protocolado no Ministério Público Federal em Dourados e enviado à Governo do Estado de Mato Grosso do Sul:
documento final
Nós, professores e lideranças Kaiowá e Guarani, reunidos no XXV Encontro de Professores na Aldeia Te’ýikue, Caarapó, MS, nos dias de 31 de julho a 02 de agosto de 2019, tornamos públicas as nossas reflexões, as dificuldades e recomendações em educação escolar indígena.
Nosso encontro teve como tema Educação Escolar Indígena: construindo novas estratégias em defesa dos direitos, com a participação de, aproximadamente 500 pessoas, organizado pelos educadores da Escola Indígena Nhandejára Polo, Aldeia Te’ýikue, Caarapó, MS.
Nos manifestamos no contexto brasileiro, onde vivem 869.917 mil indígenas (IBGE/2010), pertencentes a 305 povos, falantes de mais de 219 línguas distintas, e que, segundo o Censo da Educação Superior (INEP/MEC), em 2015 haviam 32.167 estudantes indígenas matriculados no ensino superior e 250.853 matriculados nas 3.297 escolas indígenas, onde atuam 21.161 professores. Denunciamos que a educação escolar indígena brasileira padece, assim como os demais direitos indígenas diferenciados, ante o desmonte das políticas sociais em curso pelo governo federal, estadual e municipais, produzido para atender a ganância dos poderosos que dominam o país.
Reafirmamos nossa opção pela educação escolar diferenciada para os povos indígenas, assegurada na Constituição Federal de 1988; na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, promulgada no Brasil em 2004; na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 da Organização das Nações Unidas (ONU); na Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas de 2007; na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96) e em outros documentos nacionais e internacionais que visam assegurar o direito à educação como um direito humano e social.
Destacamos que em 2019 completam 28 anos que o Ministério da Educação assumiu a responsabilidade de coordenar a política nacional de educação escolar indígena. No Mato Grosso do Sul, a educação escolar indígena completa neste ano, 34 anos. Nesse período aconteceram avanços importantes. A transferência de responsabilidades da FUNAI para o MEC foi um passo significativo para a superação das concepções equivocadas do “índio transitório”, da “incapacidade indígena”, que fundamentaram por longos anos a tutela e as políticas integracionistas e assimilacionistas, por meio dos quais o Estado tinha a responsabilidade de decidir em nosso nome. Em nosso estado, somos mais de mil professores indígenas, atuando em escolas nas áreas regularizadas, porém nas retomadas, mais da metade das aldeias onde vive nosso povo, nossas crianças continuam sendo removidas para terem o direito de estudar.
A proposta de educação escolar indígena cidadã, intercultural, bilíngue e diferenciada surgiu no Brasil na década de 1970 como contraponto ao projeto colonizador da escola tradicional imposta aos povos indígenas. Muito embora, esta proposta ainda seja um sonho, recomendamos aos nossos colegas e parentes educadores a metodologia da educação indígena e dos saberes indígenas. Precisamos ter a coragem de aplicar as ideias e metodologias propostas nos cursos de formação diferenciada, tal como foi proposto desde o I Encontro dos Professores e Lideranças Guarani e Kaiowá, em 1991. Fica, ainda, o desafio, para todos nós, de efetivar, em nossas práticas, os direitos educacionais nas escolas que ainda não são indígenas, mas que serão.
Após dois dias de estudo e trabalhos em grupo, recomendamos o seguinte:
Valorização do professor indígena, mediante a criação, aprovação e inclusão, na legislação de todos os municípios do Estado, de Plano de Cargos e Carreira do Magistério Específico, elaborado com a nossa participação.
Manutenção e fortalecimento dos cursos de formação inicial para professores indígenas como, por exemplo, Curso Normal Médio Ára Verá e a Licenciatura Intercultural Indígena. Nossas reivindicações para estes cursos são: avaliar os resultados alcançados até agora, detectar as mudanças necessárias e levantar a demanda real de formação de professores. A realização de um censo é necessária para que as vagas ofertadas atendam a nossa demanda em termos numéricos e de localidades e, além disso, que os jovens não precisem frequentar cursos genéricos, aligeirados e que não respeitam nossas especificidades, precarizando ainda mais nossa educação escolar;
Garantir a contratação de profissionais em número adequado para atuar no curso Ára Vera e de modo que o curso não sofra interrupção, tendo em vista que o curso é diferenciado e funciona também no período das férias escolares. Além dos profissionais contratados e lotados no Ára Verá, o Estado deve prever orçamento para atuação de professores convidados e sábios indígenas. O orçamento para manter este curso não pode depender somente de verba federal, afinal, trata-se de um curso regular da Secretaria Estadual de Educação, que está regulado na Constituição Federal;
Selecionar profissionais em concurso público para atuar nos cursos de formação para professores indígenas conforme critérios técnico-pedagógicos e com compromisso com a política para educação escolar indígena, estabelecidos em lei, averiguados em banca de defesa pública, além da experiência em educação básica e formação acadêmica;
Abertura de novas turmas do Ára Verá em intervalos menores e de acordo com as demandas específicas de cada região, conforme reiteradas reivindicações desde 2010 e até hoje não ouvidas. A oferta do Curso respeitará a configuração geográfica prevista em lei no Território Etnoeducacional Cone Sul. A abertura das novas turmas ocorrerá em diferentes regiões concomitantes, com pelo menos quatro anos de duração cada uma, tendo em vista que se trata de um curso na modalidade de alternância;
O critério para abertura e manutenção dos cursos de formação de professores indígenas não deve ser unicamente econômico, administrativo e político, conforme tem sido a prática do Estado, mas sim, amparado em levantamentos de demanda e estudos técnicos com a nossa participação;
Abertura do Curso de Pedagogia Intercultural em regime de alternância para formação de professores indígenas em nível superior, para atuar na educação infantil e séries iniciais da educação básica;
Abertura de cursos técnicos para profissionais indígenas na área da saúde, produção agrícola e outras conforme a necessidade;
Criação do Centro de Formação Profissional Guarani e Kaiowá, de nível médio, conforme já estamos pedindo desde 2005, em regime de alternância, que abrigaria, não só a formação de professores, como também a formação de outras demandas técnicas que necessitamos;
Aperfeiçoar a Educação de Jovens e Adultos ofertando qualificação profissional concomitantemente;
Ampliação da oferta de cursos e do número de vagas na pós-graduação em nível de especialização, mestrado e doutorado para os educadores indígenas continuarem a sua formação e aperfeiçoamento;
Respeito da secretaria estadual e municipais de educação à autonomia das escolas indígenas em sua gestão comunitária. Uma escola para ser indígena necessita de educadores indígenas, formados especificamente e que acreditem na educação escolar indígena, e de gestores públicos que reconheçam administrativamente a capacidade dos índios em gerenciar suas escolas, sem os preconceitos herdados do regime tutelar. Somos capazes e não aceitamos interferência nas nossas decisões autônomas, pois a autonomia é um direito garantido na legislação;
Os órgãos públicos precisam respeitar as nossas comunidades e organização própria. As políticas públicas, na sua elaboração e implementação, têm de ser desenvolvidas com a nossa participação. E não tem sido assim;
Os professores devem não só acreditar na educação escolar indígena, mas também receber o apoio das lideranças e dos pais. Neste sentido, é fundamental o diálogo com os pais sobre a importância da alfabetização na língua indígena, que é nossa língua materna, e a valorização dos saberes indígenas na escola;
Desenvolver um sistema de avaliação em educação escolar indígena e de seus profissionais adequado à nossa realidade e em diálogo com as comunidades;
As escolas indígenas são espaços coletivos, onde convivem várias parentelas, mas com um objetivo comum: a educação escolar de qualidade, que permita tomar o futuro em nossas mãos. Para tanto, a política externa dos governos municipais, estadual e federal não têm o direito de instrumentalizar nossas escolas, educadores e crianças para atender seus interesses particulares;
Os funcionários técnico-administrativos das escolas indígenas necessitam também de formação diferenciada e permanente para bem atenderem nossas comunidades, com a recomendação de que sejam também indígenas;
Formação adequada dos diversos profissionais e agentes indígenas e não indígenas que atuam nas aldeias e escolas para que em suas ações não violem nossos direitos, aumentando os problemas, ao invés de contribuir para sua resolução;
A manutenção e ampliação do orçamento próprio para educação escolar indígena, pois a maioria de nossas escolas necessita de reformas, ampliação das salas, cobertura de quadras, construção de mais espaços de lazer, equipamento das salas de educação infantil, brinquedotecas, laboratórios de informática, biologia, acesso à internet e melhoria no transporte escolar. Infelizmente, temos observado a diminuição constante nos últimos anos do orçamento em educação escolar indígena em nível superior e na educação básica. Somos cidadãos e temos direito à educação escolar de qualidade em todos os níveis e modalidades;
Ampliar a produção e edição de materiais escritos e midiáticos na língua materna indígena, garantindo orçamento para elaboração, publicação e orientações pedagógicas de uso destes materiais;
Revisão dos projetos pedagógicos das escolas para fortalecer, no currículo, os saberes indígenas e seus guardiões, os mestres e mestras tradicionais.
Valorizar e intensificar a presença da família nas escolas indígenas, promovendo junto com os pais a prática do esporte e os perigos do alcoolismo, tabagismo e outras drogas. Incluir no currículo escolar a Educação Antidrogas conforme assegurada nas Diretrizes Nacionais.
Ampliar o número de profissionais que atuam em educação especial, qualificando-os, não só com conhecimentos científicos, mas, e principalmente, de acordo com critérios de nossa própria cultura;
Oficializar a língua Guarani e aprimorar um programa sequencial de ensino desta língua escrita que garanta seu aprendizado curricular, além do ensino do Português como segunda língua, cuja metodologia difere do ensino de primeira língua;
Realização urgente de concurso diferenciado para profissionais indígenas atuarem em educação escolar nas esferas estadual e municipais;
Entender que a educação escolar indígena não é apenas um espaço de trabalho remunerado, ao qual temos direito, mas também um espaço de luta e de compromisso coletivo e individual por um mundo melhor, onde o bem-viver seja alcançado por todos e todas, de acordo com nosso modo próprio de viver (nãnde reko), num mundo que tem sido hostil conosco há mais de 500 anos.
Não devemos ter medo das dificuldades deste tempo obscuro, não deixemos de dizer e aplicar o que aprendemos, participemos das reuniões e encontros, pois são estes momentos coletivos que nos possibilitam manifestar nossa opinião, conversar com os parentes e planejar novas ações e estratégias para continuar resistindo.
Por fim, continuamos prontos para dialogar, mas se o Estado brasileiro não deseja nos ouvir, comunicamos que não tememos ir à luta pelos nossos direitos e territórios, pois somos guerreiros que ainda existimos porque resistimos há séculos.
Aguyjevete!
Aldeia Te’ýikue, Caarapó (MS), 02 de agosto de 2019.
Professores e Lideranças Kaiowá e Guarani”
REFERÊNCIAS E FONTES:
GUARANI E KAIOWÁ, Professores e Lideranças. Documento Final. Caarapó (MS): EMI Nhandejara Polo, 2019.
NOTAS:
REDES SOCIAIS
E OS PROFESSORES INDÍGENAS CONTAM SUAS IDEIAS. Os professores e lideranças kaiowá e guarani se reuniram nos dias 01 e 02 de agosto na Aldeia Te’ýikue, em Caarapó (MS) para refletir sobre educação escolar, avaliar os 30 anos de educação escolar indígena e manifestar-se publicamente às autoridades brasileiras. http://bit.ly/2yOgmna
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