Afirmaram que os povos indígenas não tinham religião, nem direito e organização política própria. Em 1913, uma conversa entre Kurt Nimuendajú e os guarani nas margens do rio Ivinhema (MS) demonstrou o contrário.
Esta conversa entre o etnólogo, falante de guarani, e três índios ocorreu à beira ribeirão Santa Bárbara, afluente ao rio Ivinhema, atual Mato Grosso do Sul. Os informantes contaram-lhe segredos Apapocuva-Guarani: as lendas da criação e destruição do mundo. A conversa ocorreu ao redor do fogo, pois a madrugada era fria, relatou Nimuendaju.
Ele contava e recontava a história, procurando muitos velhos para conversar e se deixar instruir. A primeira edição desta obra saiu em alemão no ano de 1914. A tradução das lendas para o alemão saiu numa revista especializada da Europa, contendo suas observações realizadas ao longo convivências e observações durante oito anos. O título da obra foi As lendas da criação e da destruição do mundo como fundamento da religião dos Apapocuva-Guarani. Foi um livro inovador, considerando que os povos indígenas foram inicialmente considerados pelos conquistadores como povos sem religião. Quando suas práticas religiosas se tornaram visíveis, sua religião foi chamada de feitiçaria por inquisidores e missionários. Depois de convertidos ao cristianismo, o Estado os considerou integrados e, portanto, sem direito à proteção.
Seu relato registrou assim:
Ñanderuvusu, Nosso Grande Pai, surgiu como primeiro [deus] como uma luz resplandescente no peito ele se descobre, sozinho, em meio às trevas originárias.
Sobre um suporte em forma de cruz, yvyra joasa, “ele dá à terra o seu princípio” e a provê de água. Então o criador encontra ao seu lado um auxiliar, Ñanderu Mbaecuaá, Nosso Pai Conhecedor das Coisas.
- Achemos uma mulher! Exclama o criador.
Mbaecuaá não sabe fazer nada, por isso responde com uma pergunta:
- Como podemos achar uma mulher?
– Na panela! Respondeu Ñanderuvusu.
Ele faz uma panela, cobriu-a e passado algum tempo ordenou a Mbaecuaá que fosse verificar. Este encontrou de fato uma mulher e a trouxe consigo. Agora há três pessoas sobre a terra: Ñanderuvusu, Ñanderu Mbaecuaá e Ñandesy, Nossa Mãe.
Outro equívoco dos teólogos foi a crença de que os índios não tinham alma, motivo que permitiria aos cristãos escravizá-los. Para os Apapocuva-Guarani, pouco depois do nascimento vem juntar-se ao ayvukuê, alento de origem divina que brota da boca, um novo elemento espiritual que completa a alma humana: o asygua, a porção imperfeita e complementar de nossa alma.
A palavra é um particípio de asy, que significa como substantivo “dor” e como adjetivo e advérbio “vivaz, violento, vigoroso”. O asygua é uma alma telúrica, terrena. Os Apapocuva atribuem as disposições boas e brandas ao seu ayvukuê, e as más e violentas ao asygua.
O apetite por alimentos vegetais e leves provém do ayvucué, o apetite por carne, do asygua, nosso modo imperfeito de viver. Após a morte, o Ayvu retorna para a morada do seu pai, Pa’i Ohero, Ayvu Rapyta, de onde veio. O Asygua permanece na terra convertida em Anguéry, espírito perigoso, também chamado de Teko Asy Kuê, angue ou mbogua, fantasma. Este espírito maléfico deve ser repelido com rezas e fumaça de tabaco, deixado por Jakairá Guasu, deus da primavera, para esta finalidade.
Percebe-se, desta maneira, que os índios têm religião, culto aos mortos, hinos sagrados, duas almas, esoterismo e sofisticada metafísica. Estas características culturais deveriam interessar àqueles que cultivam a ciência, advertiu Leon Cadógan.
Existe também um ascetismo guarani. A alma “boa” dos adultos tem a possibilidade de retornar ao mundo espiritual, percorrendo um caminho, roguatá, percorrido pelos pajés, nhanderu, e seus seguidores, yvyra’ija, que buscam ascender às regiões, yváy, paraísos mais elevados, mediante uma vida de jejuns, rezas e danças rituais, ñembo’ê. Os jejuns incluem abstenção de carne vermelha e alimentação vegetal pesada, vivendo apenas de certas frutas, de caḡuijý, milho fermentado, e mel. Assim seus corpos ficariam leves e o asygua ficará subjugado, permitindo ao ayvukuê seguir o caminho de onde viera junto Ñandesy, Ñanderyque’y ou Tupã.
A terra corre perigo. A natureza dá sinais de cansaço e clama ao criador pelo seu fim, pois já foi destruída outras vezes pelos infortúnios, Mba’e Meguá, que se sucederam um a um até o seu fim derradeiro. Apenas um cacique e sua família sobreviveram migrando para o oriente e cruzando o mar, paráry. Seu nome era Guyra Poty.
REFERÊNCIAS E FONTES:
Baruja, Salvador Pane. Curt Nimuendajú O alemão que virou índio no Brasil. Bochum, 2014.
BRAND, Antônio (1997). O Impacto da Perda da Terra sobre a Tradição Kaiowá/Guarani: os difíceis caminhos da palavra. Tese. Pontifícia Universidade
CADOGAN, León. Ayvu Rapyta. São Paulo: USP, 1959.
Nimuendaju, Kurt. As Lendas da Criação e Destruição do Mundo. São Paulo: Hucitec, 1987.
SCHADEN, Egon. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1962.
NOTAS:
Tags: ayvukuê, guasu., jakairá, nhanderu, ohero, pa’i, ñanderyque’y
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